Marcelo tem postura, coragem e elegância ao ousar e testar novas formas de elaborar vinhos, novos métodos, outros olhos sob a tradição. ele teve a coragem de ousar fazer vinhos de boutique em uma vinícola gigante como a Concha y Toro. E amigos, e ele está fazendo verdadeiras maravilhas! Maravilhas para poucos e raros, quem dera eu pudesse ser uma das felizes degustadoras de suas jóias engarrafadas!
Muitas vezes os connoisseurs colocam o raro, e até mesmo o estranho, à frente da qualidade. Com isso homens (e mulheres) que trazem a arte ao alcance de muitos não são reconhecidos como merecem. São gênios que carregam nos ombros a responsabilidade de encantar milhões, satisfazê-los, educá-los e levá-los adiante na compreensão de um novo mundo.
Com o vinho, não é diferente – já que tantos “especialistas” demonstram preconceito com os vinhos que alcançam legiões de consumidores, numa falta de compreensão do papel dos que cativam milhões de enófilos mundo afora.
Um dos responsáveis por vinhos dessa natureza é Marcelo Papa, o enólogo por trás do colossal Casillero del Diablo, e também de tops Marqués de Casa Concha e Quebrada Seca. Além disso, ele é provavelmente o enólogo que mais impulsionou o Chardonnay de altíssima qualidade em Limarí.
Com a desculpa de degustar o novo Marqués de Casa Concha Edición Limitada 2010 – eleito o melhor Cabernet Sauvignon do Chile na atual edição do Guia Descorchados –, ADEGA aproveitou para conversar com Marcelo Papa. Mesmo quando a missão profissional acabou, o assunto do jantar continuou sendo o vinho, e o enólogo se revelou um especialista apaixonado com o desprendimento de elogiar outros produtores e seus vinhos, numa raríssima combinação de conhecimento, humildade e autoconfiança.
Como surgiu esta edição limitada de Marqués de Casa Concha?
Marqués é uma linha super clássica, Cabernet e Chardonnay. Há quatro ou cinco anos, estava conversando com Patricio Tapia e ele disse que seria interessante provar um Cabernet de Tucunan, do vinhedo de Don Melchor, mas colhido como se fazia antes. Eu também gostaria de ver como ficaria. Na pior das hipóteses, sai alguma coisa péssima, mas num volume tão pequeno que posso utilizar num corte de grande volume [risos]. Bem, estava decidido.
E “como se fazia antes”?
Atirei-me ao projeto e fiz a colheita muito antes do que o normal. Um mês, quase cinco semanas antes do usual. Vinificamos cerca de sete ou oito barricas e fomos vendo que o vinho estava se transformando em algo muito interessante.
E como foi fazendo isso?
Trabalhamos bastante com Alberto Antonini e, quando ele vem degustar – usualmente no meio do ano –, degustamos todos os lotes de vinho e os selecionamos para incorporá-los aos cortes. Eu coloquei o lote na degustação com Alberto sem dizer que fora colhido antes ou qualquer outra coisa. Eu sempre o degustava e achava muito bom, mas temia estar influenciado pela experiência. Com Alberto, sempre vamos degustando e classificamos os vinhos como A, B ou C – sendo A para melhor qualidade, B para qualidade aceitável e C, descartável. A colheita 2010 foi uma safra muito boa e começaram a sair muitos A. Dentre eles estava nossa experiência. A impressão geral foi que era um lote interessante e diferenciado, e assim começamos a pensar em fazer algo a parte.
Uvas Cabernet Sauvignon usadas para o premiado Marqués de Casa Concha vieram do vinhedo de Don Melchor, um dos principais ícones da Concha y Toro, em Puente Alto
"Há boas uvas que estão abandonadas e é quase uma responsabilidade encontrar um caminho de preservação desse patrimônio. Hoje esse potencial está sendo desperdiçado"
Foi um processo fácil?
Em Concha y Toro, não é tão fácil lançar projetos novos, sobretudo em uma escala tão pequena. Então conversei com Isabel (Guilisasti – diretora de marketing da empresa) e ela concordou que tínhamos que engarrafá-lo. Minha ideia era fazê-lo numa garrafa de Borgonha, como se fazia nos anos 1970, mas começou a surgir uma questão sobre o lote pequeno de garrafas e outros temas. Além disso, era um 2010 que geralmente envaso um ano e meio após a colheita e este já levava três anos sem engarrafar. Deixamos muito mais tempo em barrica, pois o vinho tinha muita força.
Assim nasceu a decisão de colocar na garrafa de Marqués? Em Concha y Toro acharia que tinham feito uma pesquisa de mercado global [risos]...
Como havia um caminhão vindo envasar o vinho em Puente Alto, disse que tinha mais 2.000 litros para envasar de uma sobra de 2010, e envasei naquela data. Depois de engarrafado, comecei a receber mensagens do tipo: “Você já envasou aquele lote 2010? Envie-nos as garrafas para o centro logístico de Pirque”.
Processos em uma empresa grande...
Este centro é tão grande quanto o aeroporto de Guarulhos e se eu mandasse, as garrafas estariam perdidas para sempre [risos]. Então, pensei: “Vou deixar por aqui” e guardei as 1.800 garrafas por um ano na sala de barricas. Tudo registrado, mas simplesmente não queria me afastar das garrafas. Frequentemente, recebia uma chamada: “Marcelo, no inventário constam 1.800 garrafas da safra 2010, estamos vendendo 2011, então me mande as garrafas para despachá-las”. Eu tentava acalmar as pessoas e dizia para ficarem tranquilas que estava vendo isso. E mais chamadas vinham solicitando as garrafas. Fui manejando com Isabel e ninguém tinha ideia do que estávamos fazendo, nem mesmo Eduardo (Guilisasti – CEO da Concha y Toro). E o vinho se saiu tão bem na avaliação do Descorchados (o melhor Cabernet Sauvignon do Chile) que até levou Eduardo a nos permitir fazer projetos de pequeno volume dentro de Marqués.
Este Marqués é uma grande mudança de estilo e mentalidade. Há outro Cabernet de edição limitada vindo aí?
É mesmo uma mudança. Agora tenho também um Cabernet colhido cedo, de 2013, e outro vindo de Alto de Pirque guardado em foudre do tipo italiano de Barolo, apenas um foudre, um lote de 300 caixas e tchau.
É muito mais fácil fazer lotes pequenos?
Sim. A ideia foi fazer lotes pequenos que não compliquem a área comercial. O que diferencia o vinho em seu rótulo é permanecer Marqués de Casa Concha e com a etiqueta escrita à mão.
O que determina os projetos?
Serem sempre inovadores e com algo interessante. Neste ano, fiz novamente Cabernet colhido mais cedo e também uma variedade Blanca Italia, que é como um Moscatel, da zona de Itata, do mesmo vinhedo que Marcelo Retamal usa para fazer o Viejas Tinajas, mas com outro estilo. Também estou produzindo dois vinhos distintos de País, com maceração carbônica e com estilo bastante frutado e ligeiro.
Como se comparam com o País de Concha y Toro?
São bem diferentes. São mais no estilo do belo País da Torres, um vinho fresco e delicado. Um de Cauquenes e um da zona de Itata, ambos os vinhedos com 150 anos. Também vou fazer um Cinsault com maceração carbônica. Destes quatro, vai sair algo. Não creio que saiam os quatro, mas estou bem interessado que saia o País e gostaria que saísse o Blanca Italia.
Por que País?
País é uma variedade muito antiga e historicamente foi dedicada a fazer “um tinto”, pois o Chile sempre vendeu vinhos tintos. Assim tentavam produzi-lo como um Cabernet e ficava ruim, pois é muito tânico e ficava muito áspero. Temos que encontrar um bom caminho para estes vinhedos tão antigos. Há muita uva em vinhedos muito velhos e numa zona, em geral, muito bonita. Temos que fazer algo como Miguel Torres fez com Estelado. Ele encontrou uma linha, uma fruta, leve como um Beaujolais. Há boas uvas que estão abandonadas e é quase uma responsabilidade encontrar um caminho de preservação desse patrimônio. Hoje esse potencial está sendo desperdiçado agregando uvas de vinhedos centenários em cortes dos tintos mais básicos imagináveis, completamente desvalorizados.
"O mundo passou por muitos vinhos super extraídos, que são como uma pessoa que está vestindo camadas e camadas de roupa e, mesmo sendo magra, parece gorda"
País seria a verdadeira variedade autóctone do Chile?
Foi, de fato, a primeira variedade, que veio da Espanha, assim como a Crioula na Argentina e a Mission na Califórnia. Mas são variedades distintas, pois nem todas vieram do mesmo lugar da Espanha. Particularmente, a do Chile é muito especial e temos que encontrar o caminho de fazer um vinho muito agradável e especial. Eu achei o de Miguel Torres muito especial.
Falando de novos caminhos, você foi um dos primeiros enólogos chilenos a ir para os Estados Unidos, no início dos anos 1990. Como sua experiência lá influenciou sua visão sobre os vinhos?
Por razões históricas, o Chile tem uma cultura de tintos e brancos de Bordeaux. A indústria do Chile foi formada há 150 anos por indivíduos que fizeram fortuna na mineração e decidiram produzir vinhos de boa qualidade. Eles tomaram Bordeaux como parâmetro e, assim, desenvolveram-se Cabernet Sauvignon, Merlot, um pouco de Cabernet Franc e também Sauvignon Blanc e Sémillon. Nos brancos, seguimos em torno do Sauvignon Blanc e, em todos os anos que trabalhei como enólogo em Kendall Jackson, praticamente não fiz Sauvignon Blanc. Todo o meu esforço foi concentrado em Chardonnay, então, nesse sentido, tenho a felicidade de ter um parâmetro de Chardonnay muito claro.
"Não sei se as pontuações são tão importantes quanto no passado. Hoje, elas funcionam como guias e não como uma ditadura, como era com Parker"
E como mudou o Chardonnay daquela época para hoje? Os grandes Chardonnay americanos atuais não são mais tão amadeirados
No início, os Chardonnay dos Estados Unidos eram puramente comerciais. Obviamente, trabalhando com Kendall Jackson, 80% era comercial, mas quando se metia no Russian River, com La Crema e todo o resto, estávamos trabalhando para elevar muito a qualidade. Tínhamos muitas degustações com Chardonnay da Borgonha para comparar e nos puxarmos para um nível de qualidade mais alto. Aí, aprendi muito e pude aplicar no Chile. Assim, em 1996, iniciamos a vinificação de Chardonnay de Limarí.
Em Quebrada Seca, você está fazendo Chardonnay capazes de evoluir por anos...
De fato, o Chardonnay de Quebrada Seca, degustado após sete anos, continua evoluindo muito bem.
E qual é o segredo?
A técnica é muito simples: menos é mais. No fundo, o Sauvignon Blanc no Chile segue muito a escola neozelandesa para garantir grande quantidade de aroma. E o mesmo era aplicado no Chardonnay, vinificavam redutivo e com macerações. E este não é o caminho do Chardonnay, pois colhe-se à mão, envia à prensa e a faz trabalhar o mínimo possível. Hoje em dia, este conhecimento está um pouco mais decantado e há enólogos como Felipe Müller, Marcelo Retamal e outros que estão fazendo Chardonnay como se deve fazer.
Mas não se trata de uma nova padronização, certo?
Tem uma questão de estilo. Você pode gostar mais de Quebrada Seca, que é como um Meursault, Puligny, ou mais de Talinay, que é mais como um Chablis, mas não pode-se dizer que este ou aquele seja melhor. São estilos diferentes. Em um, tem argila com calcário e, em outro, tem menos argila, como o caso de Talinay.
Pode explicar isso?
A argila tem um papel importante na estrutura do Chardonnay. Em Casablanca, por exemplo, você tem dificuldade de encontrar argila. Lá, o calcário está associado ao granito e o granito não é amigo do Chardonnay. A argila, por sua vez, é amiga do Chardonnay, mas não do Sauvignon Blanc, que necessita de outro tipo de solo. Na parte costeira, Leyda e Casablanca, quando há argila, sempre está nas encostas das montanhas, e nelas sempre há também granito. A argila com granito é uma boa alternativa para o Chardonnay, mas não é perfeita. Em Limarí, está tudo na medida.
Como é o solo em Limarí?
Em Quebrada Seca, há 30 centímetros de argila roxa (há 30 ou 35%) e abaixo é puro calcário. Em Talinay, nesta camada superior, há mais areia junto a 15% de argila, e assim o efeito do calcário é maior, pois a raiz vai mais fundo. Assim, estes vinhos são menos amplos e estruturados do que Quebrada Seca, mas mais longos e minerais. Limarí apresenta o mesmo para o Pinot Noir.
Você é um estudioso do terroir, como vê o efeito disso nos vinhos?
O mundo passou por muitos vinhos super extraídos, que são como uma pessoa que está vestindo camadas e camadas de roupa e, mesmo sendo magra, parece gorda. Estamos aplicando a estratégia de que menos é mais, inclusive em variedades como Syrah de Limarí e Maipo, vinificando-os em tanques abertos como Pinot Noir. Sem moer e com 10 a 15% de ramos inteiros para ter menos extração e uma linda fruta que permite ver de fato o que está por trás.
A madeira em foudres serve mais como um recipiente?
Por muito tempo trabalhamos com barricas, e elas, no fim das contas, colocam no vinho tinto grafite, mocha e tostado, que são como a roupa que esconde a verdadeira silhueta. Temos foudres de 5.000 litros em Peumo e Puente Alto, madeira sem tostar para a guarda.
De que maneira seu gosto como consumidor afeta sua visão sobre o vinho?
Os vinhos que hoje me encantam e desafiam, muitos consumidores não gostariam de tomar. Hoje estou metido no Piemonte e na Borgonha.
Você tem um grande poder de ditar estilos, pois, além de milhões de consumidores dos seus vinhos, há pessoas atentas que veem e seguem o que vocês estão fazendo...
Temos que lembrar que, nos últimos 20 anos, o mercado esteve dominado pelas pontuações que valorizavam a super extração e o alto álcool – no estilo Michel Roland –, mas isso, nos últimos anos, mudou muito, o que nos permite ir mudando e influenciando. Temos uma legião de consumidores que começa com vinhos com fruta bastante madura e também madeira. Estes são os vinhos de que eles gostam. Com Casillero, por exemplo, vamos fazendo mudanças paulatinas, apresentando vinhos mais frescos, com menos álcool, menos dulçor e que vão sendo desfrutados mais e mais.
E com Marqués e Quebrada Seca?
Estes vinhos nos permitem ir abrindo um caminho distinto, e dá para jogar mais com o conhecimento do consumidor. Também não sei se as pontuações são tão importantes quanto no passado. Hoje, elas funcionam como guias e não como uma ditadura, como era com Parker. Mas, acima de tudo, o importante é apresentarmos sempre vinhos de grande qualidade em cada estilo e ir ajudando o consumidor a manter seu prazer de tomar vinho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário